Selfies na Floresta: armadilhas fotográficas e os novos caçadores

14/01/2020

Durante a graduação, no interior de Minas Gerais, ia com frequência ao Parque Estadual da Serra do Brigadeiro. Lá, antes da implementação da sede e estrutura atual, havia uma casinha de pesquisa onde ficávamos alojados. Numa destas viagens, lembro de acompanhar uma conversa entre dois professores na mesa. Entre doses de pinga para espantar o frio da noite, um deles — meu orientador na época — falava da frustração de nunca ver os muriquis na Serra, e da dificuldade de se encontrar alunos interessados em trabalhar com mamíferos. O outro, um herpetólogo, fez algumas reflexões.

Segundo ele, havia alguns perfis claros de aspirantes a pesquisadores interessados em trabalhar com fauna. Primeiro seriam aqueles que precisam ter contato direto com o bicho. Aquele cara que tem que chegar perto, tocar. Esses trabalham bem com insetos, anfíbios, roedores e, dependendo, também com aves. Outros já se satisfazem em ter contato visual, auditivo. Esses seriam os que se dão bem trabalhando com aves e primatas. Ninguém com esses perfis, dizia o professor, deveria se envolver com trabalhos com mamíferos de médio e grande porte ou bichos de pelo. A razão é que se frustrariam rapidamente e logo abandonariam o projeto.

Muito mais tarde, ouvi meu orientador do mestrado – o Prof. Adriano Chiarello – respondendo a um aluno que o procurou dizendo que tinha interesse em trabalhar com mamíferos. A resposta, na sua inconfundível elegância quase britânica foi:

Ora meu caro, você quer dizer que tem interesse em trabalhar identificando pegadas, fezes e fotos de mamíferos, certo? Pois é com isso que passará a maior parte do seu tempo.

Realmente, trabalhar com mamíferos de médio e grande porte, especialmente predadores pode ser um trabalho frustrante. É necessário um quê de detetive e uma alma de caçador. Tem de gostar de quebra-cabeças. É encontrar um pisoteio caótico de pegadas e ser capaz de criar mentalmente cenas de batalhas e perseguições de vida e morte onde um predador lutou com sua presa. É perceber marcas de unha onde outros passam batido, é observar os padrões, procurar as distorções geradas pelo que passou ali antes de você…

Já dizia o poeta, para transar de rato em buraco de rato você tem que entrar. E para despertar o seu espírito caçador faz muita diferença encontrar seu pai do mato. Quando falamos de caçador pensamos no sujeito todo fardado, com gandola do exército e rifle com mira telescópica. Ledo engano, o caçador de verdade no Brasil é aquele sinhozinho de jeans remendado, camisa amarelada, botina estourada e sacola nas costas que você vê pela estrada e não dá nada por ele. Esse sabe onde os bichos estão, esse sabe onde o macuco dorme, onde a cutia bebe água e onde a onça berra. Esse é quem pode te ensinar algo. O melhor mateiro que se pode achar é um ex-caçador. Estes hoje em dia são raros e muito desconfiados. Se tiver a sorte de conhecer um, aprenda tudo que puder enquanto pode.

Mas no fim das contas, apesar de precisarmos de alma de caçador, só queremos usar este instinto para encontrar onde os animais estão. E a trindade pegadas-fezes-fotos continua. Mas afinal do que se tratam essas tais fotos? As novas metodologias nos permitem fazer coisas que há poucos anos não seria nem imaginável. Mas no caso da pesquisa com mamíferos, uma nova-velha tecnologia mudou o jogo. A armadilha fotográfica não  é nada mais que uma combinação de sensores de movimento e calor com câmeras fotográficas dentro de uma caixa e registra espécies que transitam na sua frente. Nas últimas semanas, o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP-ICMBio) divulgou um vídeo de uma onça-pintada “jogando capoeira” com um tamanduá-bandeira. O registro feito na Reserva Biológica do Gurupi, no Maranhão, foi feito com um destes equipamentos.



Alguns anos atrás, os amigos do Instituto Biotrópicos registraram uma foto de uma onça-pintada carregando um tamanduá-bandeira abatido no Parque Nacional Grande Sertão Veredas. Em poucos anos as armadilhas fotográficas que utilizavam filmes fotográficos foram substituídas por câmeras digitais, e agora temos praticamente vídeos gravando em tempo real nas florestas. Em poucos anos passamos de um “causo” para uma foto da onça arrastando um tamanduá, e agora um vídeo dos dois nos paranauê. Hoje é possível encontrar armadilhas fotográficas para todos os gostos e bolsos. Desde equipamentos básicos a equipamentos com flash negro e transmissão wireless. Mas nem sempre foi assim.


Onça-pintada fotografada com armadilha fotográfica no Parque Nacional Grande Sertão Veredas por pesquisadores do Instituto Biotrópicos.


O “pai” da fotografia de vida selvagem é George Shiras III. Foi o primeiro a usar flash para fotografar animais durante a noite, e desenvolveu as primeiras armadilhas fotográficas. Caçador durante toda a juventude, Shiras usava as mesmas técnicas de caça para encontrar os animais a noite. Com lanternas de querosene na proa do barco, encontrava os animais pelo brilho dos olhos, e ao invés de atirar uma lança mirando na direção dos olhos passou a usar um enorme aparato de fotografia. Sua obra entrou para a história quando 74 de seus registros pioneiros foram publicados na National Geographic em 1906. Além de “fachear” as margens em busca de animais, Shiras desenvolveu o que ficou conhecido como “flashlight trap photography”. Ele usou uma variedade de técnicas envolvendo fios amarrados com iscas e esticados em trilhas e quando animais puxavam ou esbarravam acionavam a câmera em que estavam ligados.


George Shiras e seu assistente John Hammer em sua canoa equipada com equipamento fotográfico no Whitefish Lake em Michigan, 1893


Nas décadas seguintes, criar aparatos que possibilitassem que os próprios animais acionassem as câmeras tirando selfies atraiu muitos entusiastas e sportsmen (como caçadores elegantes se intitulam). Em 1926, o livro How to hunt with the camera de Willian Nesbit explicava técnicas para se capturar imagens utilizando diferentes estratégias e aparatos.

No ano seguinte, Frank Chapman usou as técnicas descritas por Nesbit na recém-criada base de pesquisa em Barro Colorado, no Panamá, estabelecendo a primeira pesquisa científica com armadilhas fotográficas. Neste trabalho, Chapman trouxe os primeiros registros de jaguatiricas e discutiu técnicas de se identificar indivíduos por marcas e padrões de pelagem nas fotos.


Jaguatirica registrada por Frank Chapman em 1927 em Barro Colorado no Panamá.


Desde então, as armadilhas fotográficas se tornaram uma ferramenta indispensável para quem deseja trabalhar com mamíferos terrestres de médio e grande porte. De inventários, passando por estudos de comportamento, abundância relativa, a densidade absoluta e padrões de ocupação. A lista não para de crescer, e, na última década, com a facilidade de acesso e compra, mais e mais registros fantásticos e novos estudos vêm trazendo maior compreensão sobre a ecologia de espécies raras e elusivas (esquivas, difíceis de se detectar).

Em minha pesquisa, tive a oportunidade de trabalhar com as antigas câmeras analógicas. Eram praticamente à prova de tudo, mas caríssimas, pois não havia muitas marcas no mercado, e eram todas importadas. Ainda hoje, temos caixas com armadilhas fotográficas com mais de 10 anos que funcionam! Atualmente, passamos a utilizar câmeras digitais, já que infelizmente não vale mais a pena usar as analógicas por conta da demanda de logística e do pouco tempo de autonomia delas em campo.


Equipe do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas preparando-se para a amostragem com câmeras analógicas em 2007.


Com as novas câmeras digitais, comecei novas amostragens no Pontal do Paranapanema, e os primeiros resultados já são promissores. Nessa sessão nostalgia navegue abaixo neste mapa interativo com alguns registros do Projeto Detetives Ecológicos nos últimos 10 anos:

* Caso tenha problemas em visualisar as fotos e vídeos acima clique neste link (pode  clicar sem medo) e veja o mapa completo! Não se esqueça de voltar para dizer o que achou!


Fernando Lima

DesAbraçando Árvores © 2018